Escrava Isaura: ousadia e inovação 35 anos depois.
por Guilherme Staush
Desde 1976 temos presenciado muitos momentos históricos na teledramaturgia brasileira: nos emocionamos com uma feirante semi-analfabeta lutando para dar tudo do bom e do melhor aos filhos ingratos; vivemos o mistério do assassinato de Salomão Hayalla; vibramos com uma ex-presidiária aos embalos de uma frenetic Dancin’ Days; nos divertimos com dois primos doidos que disputaram uma verdadeira guerra dos sexos, e com dois costureiros que quase se mataram para conquistar um lugar de destaque na alta costura; presenciamos a história de uma cidade que vivia à sombra de um mito, e uma viúva que foi sem nunca ter sido; fomos cativados com a história de um matuto analfabeto que conquistou o poder e o coração de uma professorinha; reverenciamos a beleza do Pantanal, da Amazônia, dos pampas e do sertão nordestino; redescobrimos a continuidade de uma história de amor em um plano espiritual, e assistimos atônitos ao encontro de um homem com seu próprio clone. Mas, talvez, nenhuma dessas histórias tenha feita tanto sucesso ou ocupado um lugar maior na mente dos telespectadores, quanto a história da escrava branca que sofreu nas mãos de seu algoz até encontrar o caminho da liberdade e da felicidade ao lado do amor de sua vida.
Apesar de terem se passado 35 anos, a novela “Escrava Isaura”, escrita por Gilberto Braga, baseada no romance homônimo de Bernardo Guimarães, continua irretocável.
Talvez essa seja uma das grandes vantagens das novelas de época: resistem mais ao tempo, evidenciando menos sinais de envelhecimento do que as tramas contemporâneas, preservando mais suas características técnicas, seja iluminação, figurinos ou cenografia.
Levada ao ar em 1976 pela Rede Globo, a novela contou a história de Isaura (Lucélia Santos), uma escrava branca que, mesmo tendo sido criada por sua boa madrinha, Estér (Beatriz Lyra), era tratada com diferença pelas pessoas que a cercavam, e sofreu bastante até conseguir conquistar sua liberdade: a tão almejada carta de alforria. Apesar de ter sido educada, ter aprendido a ler, escrever, cozinhar, tocar piano e falar outros idiomas, Isaura era sempre vista com assombro e piedade pelos moradores da região por ser uma escrava. Vivia com a madrinha e o padrinho na grande fazenda situada em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro.
Com a chegada de Leôncio (Rubens de Falco), filho do comendador Almeida (Gilberto Martinho), o telespectador presencia um verdadeiro jogo de poder, ódio e sedução envolvendo vítima e algoz. Leôncio se encanta com a meiga Isaura e nutre um sentimento de posse pela escrava. Incapacitado de demonstrar afeto, ele só deseja possuí-la a todo custo, já que se trata de uma “propriedade” sua.
É interessante observar a ousadia da novela em uma época de plena ditadura, quando pouco podia se falar sobre um tema polêmico, principalmente em uma novela das 6. Ainda que nas entrelinhas, os diálogos entre Isaura e Leôncio deixam claras as intenções do senhor com relação a sua escrava. O tesão e a vontade de possuir a escrava são por algumas vezes declarados em formas não tão sutis, como, por exemplo, na cena em que Leôncio mostra uma fruta à Isaura e diz: “você sabe o que é isso, Isaura?”. Ela responde: “É uma fruta”. O senhor prossegue: “pois veja o que eu faço com ela...”. Ao dar uma dentada na maçã que segurava, ele continua: “eu faço isso porque ela me pertence...”. Em outra cena, Leôncio faz questão de agradar uma de suas escravas com um belíssimo colar na frente de Isaura, mostrando a ela que ele recompensa muito bem as escravas que lhe satisfazem.
Um dos grandes méritos da novela fica por conta de sua narrativa muito bem distribuída ao longo de seus 100 capítulos (o que corresponderia hoje em dia a cerca 50 capítulos, pois naquela época, as novelas das 6 tinham apenas dois blocos e duravam cerca de 30 minutos, metade do tempo de duração de uma novela do mesmo horário atualmente).
Na primeira metade, o mocinho é vivido por Tobias (Roberto Pirilo) que, apaixonado por Isaura, faz de tudo para conseguir comprar sua liberdade, mas é sempre ludibriado por Leôncio e suas artimanhas para manter a escrava sob seu domínio. Para grande surpresa do telespectador, o mal vence o bem na primeira metade da novela, e Leôncio acaba conseguindo matar seu rival. O grande sonho da sofredora escrava parecia ter findado naquele momento. No entanto, a segunda metade da novela, ganhando um ritmo maior, traz novas surpresas ao público. Durante a fuga de Isaura para Minas Gerais, com seu pai e mais dois escravos, ela conhece Álvaro (Edwin Luisi), o homem que irá libertá-la da escravidão e aprisionar seu coração para sempre.
Dono de uma grande fortuna, o pretendente de Isaura consegue comprar todos os bens pertencentes a Leôncio (inclusive a escrava Isaura), que contraiu muitas dívidas ao longo dos anos em que administrou os bens do pai.
“Escrava Isaura” é, ainda hoje, um dos maiores sucessos da teledramaturgia nacional, tendo sido vista em cerca de 80 países. Com isso, Lucélia Santos passou a ser uma estrela internacional já em seu trabalho de estreia. A novela ganhou uma segunda versão na Rede Record, em 2004. Desta vez, escrita por Tiago Santiago e sendo igualmente dirigida por Herval Rossano.
“Isaura” representou uma grande inovação na teledramaturgia, seja pela história em si ou pela ousadia como foi contada. A obsessão do senhor por sua escrava, o jogo de sedução entre vítima e algoz, o desejo de posse do dono em contraste com a busca da liberdade de sua “peça” deram o contorno essencial a esse belíssimo drama de época. Uma trama bem costurada, com direção competente, e protagonistas (Lucélia e Edwin) que, embora estreantes, conseguiram segurar bem a história. O grande destaque, entretanto, ficou por conta de Rubens de Falco e Léa Garcia. Leôncio está na galeria dos vilões antológicos da televisão, e é lembrado até hoje como um dos maiores símbolos masculinos da vilania em se tratando de teledramaturgia, ainda que com a interpretação caricata e por vezes canastra do ator. Já Léa Garcia, vivendo a malvada escrava Rosa, que tomada de ciúmes por Isaura, não mede esforços para atrapalhar a vida da inimiga, brilhou em um de seus melhores papéis na TV.
Vale citar, também, as excelentes participações de Gilberto Martinho, Norma Blum, Ângela Leal, Isaac Bardavid, Dary Reis, André Valli, e Zeni Pereira que, como de costume, roubou várias cenas no decorrer da novela, vivendo Januária, a "mãe-preta" de Isaura.
Fotos: Memória da TV
4 comentários:
Ótima homenagem. Acho que só o Gilberto Braga não concorda por motivos conhecidos e explicados por ele próprio no Museu da Imagem e do Som, no Rio.
Resta aguardar daqui a alguns anos o que o autor vai falar a respeito da atuação de Paola Oliveira em "Insensato Coração".
Impossível esquecer Escrava Isaura e quem assistiu sofreu, não pela Isaura, mas com ela, tamanha a entrega da Lucélia a personagem, aliás uma das suas características de atriz. De igual modo, sentiu-se ódio e pavor do Leôncio, personagem marcante do Falco. E, bem observado pelo Guilherme, a Léa Garcia também deu vida a escrava Rosa, de modo ímpar, nunca mais conseguindo tão bons personagens, lamentavelmente. Não esqueço daquela cena clássica da teledramaturgia, em que ao tentar assassinar a Isaura acaba por tomar o vinho envenenado por engano.
Parabéns pelo texto!!!
"Acho que só o Gilberto Braga não concorda por motivos conhecidos e explicados por ele próprio no Museu da Imagem e do Som, no Rio."
Gilberto Braga não concorda com o quê?
Eduardo Vieira - Recife/PE
Não era nascido na época de Escrava Isaura, mas felizmente assisti em 1999 a novela "Força de Um Desejo", em que Gilberto, junto com Acides Nogueira, reviveram a trama de uma escrava (Olívia, Cláudia Abreu) que foge da paixão obsessiva do vilão (Higino, Paulo Betti). De certa forma foi uma nova versão, atualizada e melhorada, da Escrava Isaura original.
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